sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Birds on The Wires

Estou acompanhando há algumas semanas a eleição do concurso Youtube Play. Um brasileiro, Jarbas Agnelli, inscreveu um trabalho seu em vídeo, feito há um ano, em que apresenta o tipo de material do qual o ser humano é dotado e do qual faz pouco uso. No geral, nenhum.
  O G1 publicou uma matéria da apresentação do vídeo que foi escolhido um dos 25 melhores. Aos que admiram o ser humano, a sua capacidade de enxergar arte, um exemplo.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

O desenvolvimento e a fumaça

Por Lúcio Flávio Pinto*

Talvez Marina Silva (PV) tivesse mais votos se disputasse a presidência de um país europeu do que a do Brasil. O solo do Velho Mundo se mostra mais receptivo do que o do Novo Continente ao seu discurso ecológico. Num país de extensão continental e crente que tem território suficiente para manter indefinidamente a expansão da sua fronteira econômica, falar em proteção da natureza e manter a floresta em pé parece devaneio, quando não loucura. Não rende votos porque não toca na parte mais sensível do corpo humano, que, segundo o maior dos economistas, lorde Keynes, é o bolso.

Compra-se como nunca, consome-se desenfreadamente, há dinheiro se espalhando pela sociedade e difunde-se a certeza de que desta vez o Brasil chegou ao topo da economia mundial – e não vai mais ser despejado de lá, como em outros momentos do sonho do país grande.

As garagens e as ruas se enchem de carros, edifícios são levantados aos milhares, as vitrines e as prateleiras das lojas têm maior diversidade de produtos em exibição e a rede de serviços se amplia, diversifica-se e se sofistica. Se está dando certo, por que mudar o ritmo e a direção das atividades produtivas?

Claro que alguns “detalhes” importantes são sonegados ao grande público, que já parece ter decidido eleger “a candidata do Lula”, sem mesmo se importar em saber quem ela seja.  Depois de Collor, responsável pela primeira das três derrotas sucessivas de Lula, é o maior salto no escuro que o eleitor já deu, maior do que aquele pulo traumático que elegeu Jânio Quadros, exatamente meio século atrás. Como se sabe, o salto não terminou até hoje. Viramos órfãos de Jânio. E de Collor. De Dilma também?

Um desses “detalhes” ignorados pela massa: o elevado grau de endividamento geral, em contraste com a baixa taxa de poupança do cidadão brasileiro. A nação pensa no imediato (a longo prazo, todos estaremos mortos, palpitou também o inglês afetado John Keynes). O crédito está fácil e abundante (embora à maior taxa de juros do mundo) e o cartão plástico é mágico. Daí um terço do PIB, que representa a soma da riqueza nacional, ser formado por crédito. É dinheiro que sai e vai precisar voltar um dia. Em proporção nunca antes vista (mas este nunca não se ouvirá da boca de Lula, contumaz usuário do valor absoluto).

O prazo de cinco anos para comprar o automóvel ou 20 para quitar o apartamento pode terminar e a dívida, não. O descompasso pode vir muito antes. O índice de inadimplência já acendeu o alerta amarelo. Mas isso é “detalhe”. Melhor esquecê-lo e votar na mãe do PAC, o programa de aceleração do crescimento. Prosseguindo na diretriz do padrinho Lula, ela vai manter a circulação de riqueza, o emprego, a grana no bolso e os olhos vidrados pelo consumo sem freio.

Por incrível que possa parecer aos dogmáticos e intransigentes, o clima é o mesmo de quatro décadas atrás, entre o final dos anos 1960 e o início dos 1970, quando o “milagre brasileiro” era medido pelo crescimento de dois dígitos do PIB. A matriz dessa máquina também era o endividamento, que o governo foi buscar no exterior. Seu combustível, o silêncio e a “paz social” imposta por um feroz aparelho de repressão policial, azeitado pelo regime militar.

Eleito e ainda não empossado, Lula admitiu de público que admirava os tecnocratas. Protegidos pela espada dos generais, eles conceberam um planejamento do desenvolvimento muito parecido ao do PAC. Com a diferença de que os atuais projetos de impacto não resultaram em taxas de incremento do PIB tão altas (abaixo da metade até agora) e Lula não tem as ferramentas (nem as armas) dos generais. Embora tenha como consultor o mais poderoso dos tecnocratas dessa época, o economista Antônio Delfim Netto.

Delfim deve se sentir tão à vontade agora quanto na época em que dava ordens diretas, como czar personificado e não conselheiro, ou eminência parda. De qualquer maneira, como na matemática, a ordem dos fatores não altera o produto. Da mesma maneira que os militares, carentes da matéria nas suas escolas de formação, também Lula nada entende de economia. Delega a tarefa de cuidar das finanças a tecnocratas semelhantes aos dos generais. Como o tucano-peemedebista sem plumas Henrique Meirelles, presidente do Banco Central.

Em tal contexto, o discurso ambientalista de Marina Silva soa tão frágil e franzino quanto sua aparência física. Seu índice de preferência nas pesquisas não se alterou e parece ter-se cristalizado. No mês passado, quando começou a propaganda eleitoral gratuita (ma non troppo) pela televisão, o Brasil ardia em fogo e era coberto pela fumaça de um dos símbolos e sustentáculos do crescimento que o PAC apoia: o agronegócio.

O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) registrou mais de 26 mil focos de fogo no país, 270% a mais do que no mesmo mês de 2009. O que aconteceu de diferente no período para provocar situação com a dramaticidade que a própria televisão exibiu?

Em agosto de 2009 não havia campanha eleitoral. Ela agora está ativa e mobiliza recursos para a definição dos rumos políticos. A tentativa de brecar duas anomalias civilizatórias ainda de prática corrente no Brasil do século 21 – a derrubada da densa floresta nativa tropical para substituí-la por um recurso natural de valor inferior e uma atividade econômica de curta duração, e o uso do fogo, a mais primitiva das tecnologias humanas, para expandir ou sustentar essa mesma atividade – esbarrou mais uma vez em uma iniciativa nascida da “base aliada”.

Um partido comunista por assim dizer clássico, o PC do B, que apoia um partido neoesquerdista, o PT, sabotou o texto do novo Código Florestal. De tal maneira que os agentes dos desmatamentos e das queimadas se sentiram livres, leves e soltos para ignorar as normas ecológicas sugeridas e prosseguir na sua faina destruidora. A insensatez teve seus efeitos ampliados por uma temporada de seca mais rigorosa do que o normal.

Para estupor dos observadores mais atentos, ou mais sensíveis, o aeroporto de Porto Velho, a capital de Rondônia, ficou fechado durante três dias. A cidade estava coberta por enorme e densa fumaça, soprada pelo vento do Atlântico para a cordilheira dos Andes, paredão que fez refluir esse smog doentio sobre o extremo oeste da Amazônia.
Fato absolutamente inédito: durante quatro dias, o aeroporto de Manaus também esteve no abre-e-fecha por causa da mesma leva de fumaça, apesar de estar a 900 quilômetros da capital rondoniense. Nunca os habitantes da Zona Franca se viram em situação igual: ter que conviver com a densa névoa, que tornou o ar pesado e atacou gargantas e olhos da população.

É preciso ver e viver as mudanças que têm ocorrido na Amazônia para senti-las e poder discerni-las como realidade por trás de papéis e números frios, ou de discursos falsos. Entre 2007 e 2009, segundo o IBGE, Rondônia foi o terceiro estado que mais reduziu o desmatamento – em 84% – no Brasil. Mas essa façanha não serve de consolo. A derrubada de floresta no Estado é tal que ele não quer mais pertencer à Amazônia. Reivindica sua incorporação ao Centro-Oeste para poder continuar a desmatar, além dos 50% que atingiu. Rondônia já é um Estado infrator do atual Código Florestal, velho de 45 anos, mas talvez melhor do que o seu sucedâneo desnaturado pelos intelectuais neoalbaneses do Brasil.

A segunda melhor redução do desmatamento (de 85%) aconteceu do outro lado da Amazônia, em Roraima. Pois foi justamente lá que, entre 1987 e 1988, ardeu a tese de que a floresta úmida amazônica é insuscetível à combustão natural e refratária ao fogo humano. Foi o incêndio mais prolongado, em tempo e espaço, de toda a história da região. O primeiro caso de queima da floresta nativa em função da alteração da paisagem pela ação humana em combinação com o ressecamento do clima, hoje uma preocupação nacional. Uma conjunção literalmente explosiva, mas que se expande na Amazônia, ameaçando-a cada vez mais.

O Acre, sim, combinou redução do desmatamento (de 93% entre 2007 e 2009) e esforços para dar conteúdo de realidade à sua “Florestania”, política pública para manter a floresta em pé, demonstrando que essa é a escolha certa – e também a mais rentável. Mas o Acre tem o sétimo pior índice de desenvolvimento humano (IDH) do país. Não por acaso, fazendo companhia ao Pará nesse rabo de fila, ambos tendo optado pelo extrativismo: o vegetal no Acre e o mineral no Pará. Dolorosa condição colonial.

Marina Silva é a mais conhecida das lideranças acreanas desde Chico Mendes, o líder seringueiro assassinado em 1988, um ano após o recorde de desmatamento de todos os tempos e ano da “Constituição-Cidadã”, mas já nem é favorita no seu estado natal. Foi superada pelos seus antigos correligionários petistas. Talvez porque eles, mantendo o discurso ecológico, agem pragmaticamente, incorporando à sua ação temas que antes negavam ou combatiam. No que, aliás, não inovam: Lula está aí mesmo para não deixá-los sós.

Para Marina, resta o consolo de ter, se não o melhor companheiro de chapa, um candidato a vice-presidente que lhe permitiria se apresentar ainda melhor ao eleitorado europeu, como uma típica candidata verde. Afinal, Guilherme Leal, o dono da empresa de cosméticos Natura, é um bilionário brasileiro para o qual o “desenvolvimento sustentável” não ficou na retórica. Traduziu-se em dinheiro, multiplicado por anexar às caras embalagens dos seus produtos a imagem de uma Amazônia bonita, desejada e admirada por todos. E que a cada nova campanha eleitoral vira mais fumaça.


*Lúcio Flávio Pinto é paraense de Santarém; tem 60 anos e é jornalista há 44. Passou por algumas das principais publicações brasileiras, e hoje é editor do Jornal Pessoal, newsletter quinzenal que circula em Belém desde 1987. Já recebeu quatro prêmios Esso e dois Fenaj, além do International Press Freedom Award. Tem 15 livros publicados, a maioria sobre a Amazônia.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Passione: Veneno em forma de folhetim

Coisas de nossa tevê em canal aberto. Começa ano, termina ano e ficamos sabendo da quantidade de recursos públicos empregados em campanhas contra o uso de drogas. Programas em horário nobre de diversas emissoras de tevê tratam do uso de drogas nas grandes cidades, investigam as razões que levam principalmente os adolescentes e jovens a buscar o uso de drogas, mostram a realidade dos morros e a vida e a morte de traficantes seja no Rio de Janeiro, em São Paulo ou no entorno da Praça dos Três Poderes, em Brasília.

Mas, moto contínuo temos a novela das 9 da Rede Globo de Televisão – Passione – e com ela a força perniciosa e letal da deseducação em larga escala. O personagem vivido por Cauã Reymond é o típico viciado: mente não ser viciado, falsifica exame antidoping, incrimina o irmão caçula, rouba para pagar o vício, é estressado por natureza e estressa toda a família ou o que possa lembrar núcleo familiar em novela da emissora líder.

O personagem, como poderíamos esperar, não encontra qualquer limite ético, moral, familiar, físico ou financeiro para sustentar o vício. A busca por drogas será acompanhada por todos que seguem a novela. Explica-se, quase didaticamente, onde podem ser encontradas, os contatos que precisam ser feitos, os diálogos necessários e os cuidados para burlar as leis. A busca do realismo, marca comum a qualquer folhetim da Globo, confundirá nossos sentidos. E até que o personagem abandone o vício, por bem ou por mal, internado em clínica especializada ou preso em algum xadrez da cidade, veremos muita água mover os índices de audiência da emissora e milhares de jovens encontrarão certo glamour na vida de Danilo Gouveia. Boa parte destes se sentirá tentada a entrar no caminho sem volta apresentado como viável pelo personagem. Outra parte nem mesmo saberá diferenciar ficção de realidade.

E se Danilo superar o vício será algo a ocorrer nos últimos capítulos, repetindo-se a macabra equação: o crime e a injustiça campeiam toda a trama, centenas de noites a fio; e a redenção, a imposição da justiça, consumirá nada mais que um ou dois capítulos do folhetim. Então, os que por qualquer motivo não assistirem ao final da novela terão na mente apenas as lições dando conta de que nada compensa mais que a ilegalidade e os comportamentos doentios. É como o Papillon – personagem criado por Henri Charriére – no cinema vivido por Dustin Hoffman, nos anos 1970: o espectador passa quase três horas vendo-o comer o pão que o diabo amassou literalmente na Ilha do Diabo (Caiena, Guiana Francesa) para ver o gosto de liberdade em não mais que em seus três minutos finais.

O raciocínio acima vale para a quase totalidade das tramas globais transmitida em horário nobre nos últimos anos. O que lhe aumenta a audiência é precisamente o grau de nivelamento por baixo a que os personagens se esforçam por conceder verossimilhança. O campeão será aquele que fique da altura de uma lâmina de barbear deitada.

Mentira vencedora

Passione é veneno puro, alienação pura, maldade pura. E baixaria para todos os gostos, altitudes e latitudes. A galeria de tipos representa o que há de mais miserável na espécie humana. Começa por filho destratando (estou pegando leve) mãe e sempre a um passo da agressão física, já que a agressão verbal ultrapassa todo e qualquer limite do que poderia ser o diálogo entre um filho e uma mãe. Refiro-me a Werner Schunemman com o seu Saulo e a Fernanda Montenegro, com a sua Bete Gouveia. Até o momento a emissora ainda não nos brindou com cenas de espancamento explícito, aquelas em que Bete será surrada impiedosamente pelo filho.

A mulher de Saulo, vivida por Maitê Proença, é um poço de vida vazia e miserável, ninfomaníaca, mulher manipuladora e sem qualquer noção de ridículo, seduz jovens por shoppings da cidade, que obviamente trai o marido Saulo duas a três vezes por semana, trai a própria filha, tem caso com o caso da filha. O ar de sensualidade – com validade vencida – de Maitê permeia toda a novela, seus olhares são sempre fatais e obsessivos. Lembram os poemas de Pietro Aretino, filho de um sapateiro, contemporâneo de Leonardo da Vinci e Michelangelo, autor dos Poemas luxuriosos.

Aliás, não sei o que deu na Globo – todas as mães são vilipendiadas, desrespeitadas, humilhadas e ofendidas. E se forem avós, a possibilidade de serem aquelas que ofendem e humilham os demais será quase certa. Tem a mãe e avó Valentina (Daisy Lúcidi) que é cafetina, sempre apta a arranjar homens maduros para cliente de sua neta (Kelly), ainda adolescente, meio tímida e sempre assustada. A pressão psicológica exercida por Valentina sobre a neta é algo que supera qualquer escala de coisa despudorada, nojenta, asquerosa. Prostituição de menores bancada por membro da família merece ser abrigada no imenso guarda-chuva da liberdade de expressão?

Tem a mãe e avó (Cleide Yáconis) que adentrando seus 105 anos tem como único objetivo trair o marido Antero (Leonardo Villar) com o bonachão vivido por Elias Gleiser. Considerando que a idade somada dos dois artistas beira o bicentenário, há momentos em que o constrangimento nos faz querer mudar rapidamente de canal. A forma insidiosa com que Yáconis ludibria o marido deixa claro que se existe algo que não tem idade é o desejo de ser vulgar, sacana, o gosto irreprimível pela traição. Ajuda a destruir qualquer bom sentimento que as avós costumam inspirar como aquela angelitude espontânea, aquela bondade ilimitada emoldurada por respeitosos cabelos prateados. Tem a mãe que criou a neta como se filha fosse, caso da personagem Candê vivida pela veterana Vera Holtz. Provavelmente é a novela que leva às telas o maior número de pessoas da terceira e da quarta idades. Lastimável que em sua maioria são pessoas quando não patéticas, ao menos muito desmioladas.

Mariana Ximenes é a protagonista. Veste a personagem Clara Medeiros: uma mulher mentirosa, sem escrúpulos, que só quer tirar proveito das situações. Trabalhava como enfermeira do marido de Bete e será a única a escutar a revelação que o empresário faz à esposa antes de morrer. É neta de Valentina, a quem não suporta, e irmã por parte de mãe de Kelly (Carol Macedo), a única pessoa com quem parece ter um vínculo de afeição. Parece ter sido criada a partir da música de Reginaldo Rossi sobre aquela que iria trair o marido em plena lua de mel. E fez isso mesmo. Engana qualquer um que lhe cruze à frente. Mente com tanta naturalidade e sempre vê sua mentira vencedora absoluta. Ilude um e outro, rouba um e outro, simula incêndio para matar marido, incrimina colega de profissão, arquiteta planos mirabolantes, se vende na noite paulistana e mostra falta de caráter de forma cabal e completa.

Desfecho infeliz

Francisco Cuoco é Olavo, o rei do lixo. Pândego. É tão convincente em seu jeito canastrão que ninguém desperdiça alguns pensamentos do tipo "quem te viu, quem te vê". Sua mulher é Clô, tendo uma Irene Ravache que rouba as cenas em que aparece. É falante, boa praça, a recorrente crítica aos novos ricos que, segundo Vinícius de Moraes, "não têm a dignidade de enriquecer que os ricos tinham ao empobrecer". É a parte leve da trama, uma trama em que traição, inveja, mau caratismo, ciúmes, falsidade, deslealdade, drogas e desvios de conduta pontuam quase que cada cena e quase que cada fala.

Há outros personagens que não valem o feijão que comem. Tony Ramos é o marido traído uma vez e prestes a ser traído outras quinhentas vezes. É o cornuto da novela. Gemma Mattoli (Aracy Balabanian) é a irmã de Totó (Tony Ramos). Gemma, assim como o irmão, é brasileira de nascimento mas vive na Itália. Sincera, amiga e cheia de amor, criou Totó e cuida dele e de toda família com tanto amor que se esquece de sua própria vida. Aracy Balabanian empresta seu talento àquele tipo de irmã mais velha que muitos de nós têm, claro, aqueles que contam mais de 50 anos.

Reinaldo Giannechini é o próprio canastrão, como sempre deixando de convencer o telespectador pois não tem jeito de protagonista, seja mocinho ou vilão. Gabriela Duarte é uma viúva Porcina (vivida por sua mãe Regina Duarte na icônica Roque Santeiro) ainda não entrada em anos, a cada cena evoca algo de pastelão, besteirol. Marcelo Antony é o personagem deprê que não poderia deixar de dar as caras em uma novela de Sílvio Abreu. Talvez seu negócio seja pedofilia mas, quanto a isto, ainda não se tem certeza. Pelos rumos da trama, se for pedofilia é pouco – talvez seja o dono de uma rede mundial de pedófilos-empresários ou coisa assim. Tem também todo o núcleo dos italianos. Tem o Arthurzinho (Julio Andrade) que representa o homossexual afetado e folclórico, chamado por seu patrão Saulo como "a gazela". É deste o vocativo adulador "Milady" para designar a patroa, Maitê. Quantos anos não escutava a célebre expressão de Alexandre Dumas cunhada em seu imortal Os três mosqueteiros! Pena que não restem na novela vestígios de Porthus, Athos, Aramis e do quarto protagonista D´Artagnan. Mas aí já é querer muito.

Tem Fátima Lobato (Bianca Bin), que ainda muito jovem engravida e, sem contar com o apoio do possível pai da criança (Cauã), decide abortar. A busca por clínica de aborto, os contatos na clínica, o ambiente de franca ilegalidade, muita sombra e pouca luz termina por avalizar a idéia que, afinal, abortar não é tão má idéia assim. Uma pena esse pequeno desfecho feliz para uma situação que poderia, ao menos, ser outra, bastante diferente. Mas quem disse que tevê aberta tem algum tipo de responsabilidade social?

Vestes sagradas

Pelo que vejo, passar 10 dias assistindo a capítulos de Passione não terá sido de todo em vão. Aprendi que se a liberdade for total, sem qualquer balizamento, sem quaisquer princípios reguladores, viveremos apenas a liberdade dos animais e não a liberdade adequada a nós, humanos. Aprendi que não basta dispor de todos os recursos humanos e materiais, não basta deter tecnologia de ponta para por em funcionamento a fábrica de ilusões que atende pelo nome de núcleo de dramaturgia de nossas principais emissoras de tevê. Há que se lutar por um tipo de arte que eleve a condição humana. Onde foi parar o senso crítico da rapaziada? Será que nenhum anunciante encontrará alguma convergência com os pensamentos ora alinhavados?

Impressiona ver tantos talentos desperdiçados com uma trama que endeusa a pequenez humana, passa ao largo de todo e qualquer valor humano, desses que uma vez vividos nos fazem pensar que a vida humana é o bem mais precioso que podemos ter. Passione é um atestado de falência múltipla dos diversos órgãos que formam o organismo da sociedade atual, onde quanto mais anormal, mais desprezível for um ser humano, maior será sua aceitação pelos demais, e quanto menos virtudes humanas uma trama tiver, maior será seu êxito comercial.

Mas, como levantar o assunto sem ser acusado de tocar as sagradas vestes da... liberdade de expressão? Por que precisamos nos contentar com um banquete faustoso, amplamente publicizado, reunindo a nata da dramaturgia brasileira experimentada nos últimos 50-70 anos, e que nos serve em horário nobre, ao longo de vários meses, nada menos que comida estragada?

Por Washington Araújo - Observatório da Imprensa

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Dicurso de Pepe Mujica - Presidente do Uruguai

Discurso proferido em dezembro de 2009 pelo presidente eleito da República do Uruguai, José Alberto Mujica Cordano (El Pepe), dirigente histórico e fundador do Movimento de Libertação Tupamaros:

A vida tem sido extraordinariamente generosa comigo. Ela me deu inúmeras satisfações, mais além do que jamais me atrevera a sonhar.

Quase todas são imerecidas. Mas nenhuma é mais que a de hoje: encontrar-me aqui agora, no coração da democracia uruguaia, rodeado de centenas de cabeças pensantes.

Cabeças pensantes! À direita e à esquerda. Cabeças pensantes a torto e a direito, cabeças pensantes para atirar para cima.

Vocês se lembram do Tio Patinhas, o tio milionário do Pato Donald que nadava em uma piscina cheia de moedas? Ele tinha uma sensualidade física pelo dinheiro.

Gosto de me ver como alguém que gosta de tomar banho em piscinas cheias de inteligência alheia, de cultura alheia, de sabedoria alheia.

Quanto mais alheia, melhor. Quanto menos coincide com meus pequenos saberes, melhor.

O semanário Búsqueda tem uma frase charmosa que usa como insígnia:

“O que digo, não o digo como homem sabedor, mas sim buscando junto com vocês”.

Por uma vez estamos de acordo. Sim, estaremos de acordo.

O que digo, não o digo como chacareiro sabichão, nem como trovador ilustrado. Digo-o buscando com vocês.

O digo, buscando, porque só os ignorantes acreditam que a verdade é definitiva e maciça, quando ela é apenas provisória e gelatinosa. É preciso buscá-la porque ela anda correndo brincando de esconde-esconde. E pobre daquele que empreenda essa caça sozinho. É preciso fazê-la com vocês, com aqueles que fizeram do trabalho intelectual a razão de sua vida. Com os que estão aqui e com os muito mais que não estão.


De todas as disciplinas

Se olharem para trás, seguramente encontrarão algumas caras conhecidas porque se trata de gente que trabalha em espaços de trabalho afins. Mas vão encontrar muito mais rostos desconhecidos porque a regra desta convocação foi a heterogeneidade.

Aqui estão os que se dedicam a trabalhar com átomos e moléculas e os que se dedicam a estudar as regras da produção e da troca na sociedade. Há gente das ciências básicas e de sua quase antípoda, as ciências sociais: gente da biologia e do teatro, da música, da educação, do direito e do carnaval. Há gente da economia, da macroeconomia, da microeconomia, da economia comparada e até alguns da economia doméstica. Todas cabeças pensantes, mas que pensam distintas coisas e podem contribuir desde suas distintas disciplinas para melhorar este país.

E melhorar este país significa muitas coisas, mas entre as prioridades que queremos para esta jornada, melhorar o país significa impulsionar os processos complexos que multipliquem por mil o poderio intelectual que aqui está reunido. Melhorar o país significa que, dentro de vinte anos, o Estádio Centenário não seja suficiente para abrigar um ato como este, pois o Uruguai estará cheio, até as orelhas, de engenheiros, filósofos e artistas.

Não é queiramos um país que bata os recordes mundiais pelo puro prazer de fazê-lo. É porque está demonstrado que, uma vez que a inteligência adquira um certo grau de concentração em uma sociedade, ela se torna contagiosa.


Inteligência distribuída

Se, um dia, lotarmos estádios de gente formada será porque, na sociedade, haverá centenas de milhares de uruguaios que cultivaram sua capacidade de pensar. A inteligência que traz riqueza para um país é a inteligência distribuída. É a que não está só guardada nos laboratórios ou na universidade, mas sim anda pela rua. A inteligência que se usa para plantar, para tornear, para manejar uma máquina, para programar um computador, para cozinhar, para atender bem um turista é a mesma inteligência. Alguns subiram mais degraus do que outros, mas se trata da mesma escada.

E os degraus de baixo são os mesmos para a física nuclear e para o manejo de um campo. Para tudo é preciso o mesmo olhar curioso, faminto de conhecimento e muito inconformista. Acabamos sabendo porque antes ficamos incomodados por não saber. Aprendemos porque temos comichão e isso se adquire por contágio cultural desde quando abrimos os olhos ao mundo.

Sonho com um país onde os pais mostrem a pastagem a seus filhos pequenos e digam: “Sabem o que é isso? É uma planta processadora da energia do sol e dos minerais da terra”. Ou que lhes mostrem o céu estrelado e façam com que pensem nos corpos celestes, na velocidade da luz e na transmissão das ondas. E não se preocupem que esses pequenos uruguaios vão seguir jogando futebol. Só que, lá pelas tantas, enquanto vêem a bola picar, podem pensar ao mesmo tempo na elasticidade dos materiais que a fazem rebotar.


Capacidade de interrogar-se

Havia um ditado: “Não dê peixe a uma criança, ensina-a a pescar”.

Hoje deveríamos dizer: “Não dê um dado a uma criança, ensina-a a pensar”.

Do jeito que vamos, os depósitos de conhecimento não vão estar mais situados dentro de nossas cabeças, mas sim fora, disponíveis para buscá-los na internet. Aí vai estar toda a informação, todos os dados, tudo o que se sabe. Em outras palavras, aí vão estar todas respostas. Mas não vão estar todas as perguntas. O diferencial vai estar na capacidade de se interrogar, na capacidade de formular perguntas fecundas, que provoquem novos esforços de investigação e aprendizagem.

E isso está bem no fundo, marcado quase no nosso de nossa cabeça, tão fundo que quase não temos consciência.

Simplesmente aprendemos a olhar o mundo com um sinal de interrogação e essa se torna nossa maneira natural de olhar para o mundo. Adquirimos essa capacidade muito cedo e ela nos acompanha por toda a vida. E, sobretudo, queridos amigos, ela contagia.

Em todos os tempos foram vocês, os que se dedicam à atividade intelectual, os encarregados de espalhar a semente. Ou para dize-lo em palavras que nos são muito caras: vocês têm sido os encarregados de acender a necessária inquietação.

Por favor, vão e contagiem. Não perdoem a ninguém.

Necessitamos de um tipo de cultura que se propague no ar, entre os lugares, que se cole nas cozinhas e até nos banheiros. Quando conseguirmos isso, teremos ganho a partida quase para sempre. Porque se quebra a ignorância essencial que enfraquece muita gente, uma geração após a outra.


O conhecimento é prazer

Precisamos, antes de mais nada, massificar a inteligência, para nos tornarmos produtores mais potentes. Isso é quase uma questão de sobrevivência. Mas nesta vida não se trata só de produzir: também é preciso desfrutar. Vocês sabem melhor do que ninguém que, no conhecimento e na cultura, não há só esforço, mas também prazer.

Dizem que as pessoas que correm pelas ruas chegam num ponto em que entram numa espécie de êxtase onde já não existe o cansaço e só fica o prazer. Creio que ocorre o mesmo com o conhecimento e a cultura. Chega um ponto onde estudar, investigar e aprender já não é um esforço, mas um puro deleite.

Que bom seria que esses manjares estivessem a disposição de muita gente! Que bom seria se, na cesta de qualidade de vida que o Uruguai pode oferecer a sua gente, houvesse uma boa quantidade de consumos intelectuais. Não porque seja elegante, mas sim porque é prazeroso. Porque se desfruta com a mesma intensidade com a qual se pode desfrutar de um prato de talharim.

Não há uma lista obrigatória das coisas que nos tornam felizes! Alguns podem pensar que o mundo ideal é um lugar repleto de shopping centers. Nesse mundo, as pessoas são felizes porque todos podem sair cheios de sacolas com roupas novas e caixas de eletrodomésticos. Não tenho nada contra essa visão, só digo que ela não é a única possível.



Digo que também podemos pensar em um país onde a gente escolhe arrumar as coisas ao invés de jogá-las fora, onde se prefere um carro pequeno a um grande, onde decidimos nos agasalhar melhor ao invés de aumentar a calefação.

Esbanjar não é o que fazem as sociedades mais maduras. Vejam a Holanda e as cidades repletas de bicicletas. Aí as pessoas se deram conta de que o consumismo não é a escolha da verdadeira aristocracia da humanidade. É a escolha dos farsantes e dos frívolos.

Os holandeses andam de bicicleta, eles as usam para ir trabalhar, mas também para ir a concertos ou aos parques. Chegaram a um nível em que sua felicidade cotidiana se alimenta de consumos materiais como intelectuais.

De modo que, amigos, vão e contagiem todos com o prazer pelo conhecimento. Paralelamente, minha modesta contribuição será fazer com que os uruguaios andem de pedalada em pedalada.


Inconformismo

Eu lhes pedi antes que contagiem os outros com o olhar curioso sobre o mundo, que está no DNA do trabalho intelectual. E agora aumento o pedido e lhes rogo que contagiem também com o inconformismo. Estou convencido que este país necessita uma nova epidemia de inconformismo, como a que os intelectuais geraram décadas atrás.

No Uruguai, nós que estamos no espaço político da esquerda somos filhos ou sobrinhos daquele semanário Marcha, do grande Carlos Quijano. Aquela geração de intelectuais impôs-se a si mesma a tarefa de ser a consciência crítica da nação. Andavam com alfinetes na mão, estourando balões e desinflando mitos.

Sobretudo o mito do Uruguai multicampeão. Campeão da cultura, da educação, do desenvolvimento social e da democracia. Acabamos não sendo campeões de nada. Menos ainda nestes anos, nas décadas de 50 e 60, onde o único recorde que obtivemos foi ser o país da América Latina que menos cresceu em 20 anos. Só o Haiti nos superou neste ranking.

Esses intelectuais ajudaram a demolir aquele Uruguai da siesta conformista.

Com todos seus defeitos, preferimos esta etapa, onde estamos mais humildes e situados na real estatura que temos no mundo. Mas precisamos recuperar aquele inconformismo e colocá-lo embaixo da pele do Uruguai inteiro.

Antes eu dizia a vocês que a inteligência que serve a um país é a inteligência distribuída. Agora, digo que o inconformismo que serve a um país é o inconformismo distribuído. Aquele que invade a vida de todos os dias e nos empurra a perguntar-nos se o que estamos fazendo não pode ser feito melhor. O inconformismo está na própria natureza do trabalho de vocês. Precisamos que ele se torne uma segunda natureza de todos nós.

Uma cultura do inconformismo é aquela que não nos deixa parar até que consigamos mais quilos por hectare de trigo ou mais litros por vaca leiteira. Tudo, absolutamente tudo, pode ser feito de um modo um pouco melhor do que foi feito ontem. Desde arrumar a cama de um hotel até produzir um circuito integrado.

Necessitamos de uma epidemia de inconformismo. E isso também é cultural, também se irradia desde o centro intelectual da sociedade para sua periferia. É o inconformismo que fez com que pequenas sociedades ganhassem respeito sobre o que fazem. Aí estão os suíços, meia dúzia de gatos pintados como nós, que se dão o luxo de andar por aí vendendo qualidade suíça ou precisão suíça. Eu diria que o que vendem de verdade é inteligência e inconformismo suíços, que estão esparramados por toda a sociedade.


A educação é o caminho

Amigos, a ponte entre este hoje e este amanhã que queremos tem um nome e se chama educação. É uma ponte longa e difícil de cruzar. Porque uma coisa é a retórica da educação e outra coisa é nos decidirmos a fazer os sacrifícios necessários para lançar um grande esforço educativo e sustentá-lo no tempo. Os investimentos em educação são de rendimento lento, não iluminam nenhum governo, mobilizam resistências e obrigam o adiamento de outras demandas.

Mas é preciso seguir esse caminho. Devemos isso a nossos filhos e netos. E é preciso fazê-lo agora, quando ainda está fresco o milagre tecnológico da internet e se abrem oportunidades nunca antes vistas de acesso ao conhecimento.

Eu me criei com o rádio, vi nascer a televisão, depois a televisão a cores, depois as transmissões por satélite. Mais tarde, passaram a aparecer quarenta canais em minha TV, incluindo aí os que transmitiam direto dos Estados Unidos, Espanha e Itália. Depois vieram os celulares e os computadores que, no início, serviam apenas para processar números. Em cada um destes momentos, fiquei com a boca aberta. Mas agora com a internet se esgotou a minha capacidade de surpresa. Sinto-me como aqueles humanos que viram uma roda pela primeira vez. Ou que viram o fogo pela primeira vez.

Sentimos que nos tocou a sorte de viver um marco na história. Estão sendo abertas as portas de todas as bibliotecas e de todos os museus. Todas as revistas científicas e todos os livros do mundo vão estar a nossa disposição. E, provavelmente, todos os filmes e todas as músicas do mundo. É perturbador.

Por isso precisamos que todos os uruguaios e, sobretudo, todos os pequenos uruguaios saibam nadar nessa corrente. Precisamos subir essa corrente e navegar nela como um peixe na água. Conseguiremos isso se a matriz intelectual da qual falávamos antes estiver sólida. Se soubermos raciocinar em ordem e fazermos as perguntas que valem a pena.

É como uma corrida em duas vias: lá em cima no mundo o oceano de informação; aqui embaixo, nós, preparando-nos para a navegação transatlântica.

Escolas de tempo completo, faculdades no interior, ensino superior massificado. E, provavelmente, inglês desde o pré-escolar no ensino público. Porque o inglês não é idioma falado pelos ianques; é o idioma com o qual os chineses conversam com o mundo. Não podemos ficar de fora. Não podemos deixar nossas crianças de fora.

Essas são as ferramentas que nos habilitam a interagir com a explosão universal do conhecimento. Este mundo não simplifica a nossa vida: complica-a. Nos obriga a ir mais longe, a ir mais fundo na educação. Não há tarefa maior diante de nós.


O idealismo ao serviço do Estado

Queridos amigos, estamos em tempos eleitorais. Em benditos e malditos tempos eleitorais. Malditos, porque nos põe a brigar e a disputar corridas entre nós. Benditos, porque nos permitem a convivência civilizada. E mais uma vez benditos porque, com todas as suas imperfeições, nos fazem donos do nosso próprio destino. Aqui todos aprendemos que é preferível a pior democracia à melhor ditadura.

Nos tempos eleitorais, todos nos organizamos em grupos, frações e partidos, nos cercamos de técnicos e profissionais e desfilamos frente ao soberano. Há adrenalina e entusiasmo. Mas depois, alguém ganha e alguém perde. E isso não deveria ser um drama.

Com estes ou com aqueles, a democracia uruguaia seguirá seu caminho e irá encontrando as fórmulas rumo ao bem-estar. Seja qual for o lugar que nos toque, ali estaremos colocando a tarefa sobre os ombros. E estou seguro de que vocês também. A sociedade, o Estado e o Governo precisam de seus muitos talentos. E precisam mais ainda de sua atitude idealista. Nós que estamos aqui, entramos na política para servir, não para nos servir do Estado. A boa fé é a nossa única intransigência. Quase todo o resto é negociável. Muito obrigado por acompanharem-me.


Pepe Mujica - Presidente do Uruguai