domingo, 21 de junho de 2009

Caros Amigos - Marilene Felinto

Marilene Felinto escreveu sua opinião na revista Caros Amigos de junho sobre o Projeto de Lei que visa proibir o tráfego de motocicletas entre os carros. Assino embaixo. Segue o texto.

Motocicletas e a luta de classes sobre rodas

As motos rincham feito cavalos, zunindo pelos corredores estreitos entre os carros, entregues a todos os azares do trânsito, menores, leves, instantâneas como devem ser as encomendas que conduzem ou vão buscar. A massa de motoqueiros, os motoboys trabalhadores, os chamados motofretistas, organiza-se mais ou menos autonomamente para ganhar alguma força nisto que seria um contrato social: e ganham, são temidos, meio homens, meio coisas aparamentadas com seus capacetes que podem esconder tanto um operário quanto um bandido. A categoria, originária assim do que as classes privilegiadas consideram a estrebaria da pirâmide social, é vista como maldita também porque costura no trânsito, faz piruetas na via e ameaças (quando se diz ameaçada) – e é especialmente hostilizada pela burguesia ávida por inventar leis que a domestique.

Mas como não há contrato social possível, não haverá lei burra passível de surtir efeito sobre esta vanguarda proletária de motoqueiros que seguem operando uma revolução permanente no trânsito. A idéia (o Projeto de Lei 2650/03, aprovado em abril último) de proibir que as motocicletas trafeguem nos corredores entre veículos é tão absurda quanto inútil: eliminaria a função do veículo ágil, e comprometeria drasticamente a ocupação dos motofretistas. A autoridade explica a medida como sendo para prevenção de acidentes e preservação da vida do motoqueiro. Todo ano morrem milhares deles nos centros urbanos.

A explicação, porém, não convence. Não há coesão social possível, nenhum consenso sobre valores: afinal, o “carrão” Tucson (modelo “SUV”, como se diz na propaganda da TV, sem se decifrar a sigla, como se todo mundo soubesse que a droga do “SUV” significa, em inglês, “sport utility vehicle”, ou seja, “veículo utilitário esportivo”; e como se fosse natural ter dinheiro para possuir um trambolho desses), afinal, repetindo, o “carrão” Tucson ocupa o lugar de quatro motocicletas na faixa de rolamento – desigualdade total na repartição das pistas. É claro que a única solução seria criar faixas exclusivas para as motocicletas (para não dizer que seria extinguir os carrões de luxo). Se isto é viável ou inviável, principalmente numa cidade como São Paulo, que tem a maior frota de motos do país, é questão de autoridade econômica e política, é questão de luta de classes. E somente este exército sobre duas rodas, no seu estilo de associação tribal, de espírito comunitário, pode ousar vencer mais uma batalha nessa guerra pela ordem pública ou pela convivência ordenada.

Em São Paulo, criou-se há uns dois anos, em algumas avenidas, uma estupidez chamada “Faixa Cidadã”, uma espécie de faixa preferencial para motocicletas. Só que ninguém nunca entendeu quem deveria dar a “preferência” a quem e nem de que modo, já que tanto carros quanto motos usavam a faixa indiscriminadamente. Não houve campanha de esclarecimento, não se via uma placa que definisse por que a tal faixa era cidadã. A própria categoria dos motoqueiros reprovou a idéia sem pé nem cabeça. Ainda tenho na minha carteira de motorista uma letra A, que me qualifica também para conduzir motocicletas, embora não dirija mais. É que, há 30 anos, no nosso tempo de faculdade, foi um tal de todo mundo comprar moto na turma com quem eu andava. No meu caso, porque não tinha mesmo dinheiro para comprar carro. Com o tempo, até mesmo o pobre do jegue no sertão do Nordeste foi sendo substituído pela moto. As novas gerações do interior rural só andam de motocicleta. Nos últimos quatro anos, o número de carros aumentou 35% aqui no país, enquanto que o de motos chegou a 82%. O carro mais barato do mundo, muito pequeno e indiano, é um sucesso de vendas. Quem sabe não está próximo o dia em que o mundo será dos que menos têm – porque já não caberá muito mais que isso nele.